sexta-feira, 12 de abril de 2013

O capitalismo como “fim da história”


Rita Coitinho*

Nesta terceira e última parte do artigo da cientista social Rita Coitinho sobre a obra Reforma ou Revolução da revolucionária alemã Rosa Luxemburgo, a autora trata da incompatibilidade do reformismo com os objetivos do movimento comunista. 

Passemos agora à última das teses do reformismo, a crescente democratização do Estado como mecanismo de democratização das relações sociais. Rosa Luxemburgo reconhece que no desenvolvimento social, sem dúvida, o Estado assume funções de interesse geral, devido às lutas travadas pelas classes que compõem a sociedade. No entanto é preciso que se esclareça que essas concessões ao interesse geral ocorrem quando não se opõem frontalmente ao interesse da classe dominante. Na medida em que essa evolução jurídica se choca com as necessidades do capital, o Estado - que não é mais do que uma organização da classe dominante - passa a travar ou mesmo atacar as conquistas sociais. 

Vejamos o caso atual da crise europeia. O estado de bem estar social existente desde o pós-guerra vem sendo desconstruído na medida em que se agrava a crise econômica no centro do sistema. Direitos hoje considerados como básicos pelo cidadão europeu, como as jornadas de trabalho reduzidas, a legislação trabalhista, os subsídios, estão sendo alvo de constantes ataques, travados desde o parlamento e dos governos centrais, que não fazem mais do que seguir as orientações da classe dominante mundial: a burguesia ligada ao sistema financeiro que controla, ao fim e ao cabo, todas as instituições políticas e econômicas da União Europeia.


Nas palavras de Rosa Luxemburgo, "nesse conflito entre o desenvolvimento do capitalismo e os interesses da classe dominante, o Estado se alinha ao lado da última. A sua política, assim como a da burguesia, opõe-se ao desenvolvimento social (...). Conrad Schmidt chegou mesmo a afirmar que a conquista de uma maioria socialista no parlamento seria o meio direto de realizar o socialismo por etapas. É evidente que formalmente o parlamentarismo serve para exprimir na organização do Estado os interesses do conjunto da sociedade. Mas, por outro lado, o que o parlamentarismo representa é unicamente a sociedade capitalista, quer dizer uma sociedade onde predominam os interesses capitalistas. Por consequência, nessa sociedade, as instituições formalmente democráticas reduzem-se, no seu conteúdo, a instrumentos dos interesses da classe dominante. Existem provas concretas: desde que a democracia tem a tendência para negar o seu caráter de classe e para transformar-se num instrumento dos autênticos interesses do povo, as formas democráticas são sacrificadas pela burguesia e pela sua representação do Estado"1. A validade dessa afirmação de Rosa Luxemburgo pode ser facilmente verificada nos sucessivos retrocessos democráticos observados pelo mundo ao longo do século XX e mesmo nos últimos anos. É por isso que a ideia da conquistar, por uma maioria parlamentar, o controle do desenvolvimento social, aparece como um cálculo errado: "preocupando-se unicamente, à semelhança do liberalismo burguês, com o aspecto formal da democracia, descuida-se totalmente o outro aspecto, o do seu conteúdo real". 

Esse pretenso "desenvolvimento ininterrupto da democracia, que o revisionismo, à maneira do liberalismo burguês, considera a lei fundamental da história humana, ou pelo menos da história moderna, revela-se, quando bem examinado, uma miragem. Podem estabelecer-se relações universais absolutas entre o desenvolvimento do capitalismo e a democracia. O regime político é sempre o resultado de um conjunto de fatores políticos internos e externos e no interior desses limites apresentam todas as graduações da monarquia absoluta à república democrática (...). Devemos renunciar à formulação de uma lei histórica universal do desenvolvimento da democracia, mesmo no quadro da sociedade moderna: se olharmos para a fase atual da história burguesa, também constatamos, na situação política, a existência de fatores que saem do esquema de Bernstein e conduzem, pelo contrário, ao abandono das conquistas obtidas pela sociedade burguesa". 

Quando isso não acontece dentro das fronteiras dos países centrais, a política exterior atira a burguesia para os braços da reação. Na mesma velocidade em que os países centrais se afundam na crise econômica crescem os investimentos em armamentos e as tensões militaristas pelo mundo. Enquanto lutam internamente para retroceder em direitos e ampliar as margens de lucro, as burguesias dos países centrais promovem o cerco às riquezas naturais e aos regimes políticos que, de uma maneira ou de outra, ameaçam seu domínio e expansão. 

É absolutamente falsa a afirmação segundo a qual a democracia burguesa é condição indispensável do movimento e da vitória socialista. "Basta reconhecer a quem o liberalismo burguês vendeu a alma, ao longo da história, acossado pela evolução do movimento operário; concluir-se-á que o movimento operário socialista é o único sustentáculo da democracia, não existindo nenhum outro. Verificar-se-á, então, que não é a sorte do movimento socialista que está ligada à democracia burguesa, mas, pelo contrário, é a democracia que se encontra ligada ao movimento socialista. Verificar-se-á que as oportunidades da democracia não se ligam à renúncia da classe operária à luta pela sua emancipação, mas, pelo contrário, ao fato de o movimento socialista ser suficientemente forte para combater as consequências reacionárias da política mundial e da traição da burguesia. Quem desejar o reforço da democracia desejará o reforço e não o enfraquecimento do movimento socialista; renunciar à luta pelo socialismo é renunciar simultaneamente ao movimento operário e à própria democracia."

Ao retirar toda a base material da teoria socialista o que o reformismo faz, é simplesmente, negar a necessidade de se conquistar o poder. Segundo as formulações dos oportunistas a luta sindical e a luta parlamentar poderiam ser praticadas para alcançar a redução progressiva da exploração capitalista e a extensão do controle social e retirar progressivamente o caráter capitalista à sociedade capitalista e dar-lhe um caráter socialista, realizando objetivamente a transformação socialista da sociedade, sem a necessidade de se lutar pelo poder político. "A teoria de Bernstein acredita no caráter socialista da luta sindical e parlamentar, a que atribui uma ação socializante progressiva da economia capitalista. Mas essa ação socializante só existe, demonstramo-lo, na sua imaginação".

Rosa Luxemburgo vai no sentido oposto. Para ela, "a luta sindical e a luta política são importantes porque atuam sobre a consciência do proletariado, porque lhe dão uma consciência socialista, porque o organizam como classe. Atribuir-Ihe um poder direto de socialização da economia capitalista (...) é retirar-lhe qualquer outra significação: deixam de ser um meio de educar a classe operária e de prepara-la para conquistar o poder (...). Se se separa a luta operária dessa prévia orientação do movimento e se fazem da reforma social um objetivo autônomo, não se conduzirá à realização do objetivo final (...)" e fará com que o movimento comunista perca de vista a luta de classes.

Ao pretender que as contradições entre produção e troca serão atenuadas pelo fim das crises, a teoria reformista esquece-se de que crises são manifestações orgânicas inseparáveis do conjunto da economia capitalista. É, "sobretudo, a ausência de desordens no desenvolvimento da produção capitalista que contém em si perigos mais graves que as próprias crises. É a constante baixa da taxa de lucro, resultante não da contradição entre a produção e a troca mas do aumento da produtividade do trabalho, que ameaça tornar impossível a produção aos pequenos e médios capitais, arriscando-se a limitar, dessa maneira, a criação de novos investimentos, a travar a sua expansão. As crises, outra consequência do mesmo processo, têm precisamente por efeito, ao depreciarem periodicamente o capital, a redução do preço dos meios de produção e, paralisando uma parte do capital ativo, aumentar o lucro, criando por isso mesmo condições para novos investimentos e uma nova extensão da produção. Surgem como um meio de incentivar o desenvolvimento capitalista. Se param (não em determinados momentos, quando o mercado mundial se desenvolve, mas se deixam de existir de fato) , a sua desaparição, em vez de favorecer o impulso da economia capitalista, como pensa Bernstein, provocaria, pelo contrário, o seu afundamento. Com a rigidez mecânica que caracteriza toda a sua teoria, Bernstein esquece, ao mesmo tempo, a necessidade das crises e da periodicidade de novos investimentos de pequenos e médios capitais. Por isso o permanente renascer dos pequenos capitais parece-lhe um sinal de paragem do desenvolvimento capitalista e não, como é o caso, do desenvolvimento normal do capitalismo".

A unidade de Bernstein, "é a unidade do regime capitalista voltado à eternidade, a unidade do socialista que renunciou ao objetivo final e vê na sociedade burguesa una e inabalável a última etapa da evolução da humanidade (...). O socialismo de Bernstein tende, já o vimos, a fazer participar os operários na riqueza social, a transformar os pobres em ricos". Mais uma demonstração do seu idealismo.

O fato é que desde que existem sociedades classistas e que a luta de classes constitui o motor essencial da história, a conquista do poder político foi sempre o objetivo de todas as classes ascendentes, assim como ponto de origem e ponto final de todo o período histórico. Isto posto, "a reforma legal e a revolução não são métodos diferentes do progresso histórico que se possam escolher à vontade como se se escolhessem salsichas ou carnes frias para almoçar, mas fatores diferentes da evolução da sociedade classista, que se condicionam e completam reciprocamente, excluindo-se, como, por exemplo, o polo Norte e o polo Sul, a burguesia e o proletariado".

"É inexato e contrário à verdade histórica apresentar-se o trabalho de reforma como uma revolução diluída no tempo, e a revolução como uma reforma condensada. Uma revolução social e uma reforma legal não são elementos que se distingam pela sua duração, mas pelo seu conteúdo; todo o segredo das revoluções históricas, da conquista do poder político, reside precisamente na passagem de simples modificações quantitativas, numa nova qualidade ou, concretizando, na passagem de uma dada forma de sociedade a outra num período histórico. Quem se pronuncie a favor da reforma legal, em vez do encontro do poder político e da revolução social, na realidade não escolhe uma via mais agradável, mais lenta e segura, conduzindo ao mesmo fim; mas tem um objetivo diferente; em vez de procurar edificar uma sociedade nova, contenta-se com modificações sociais da sociedade anterior. Assim, as teses políticas do revisionismo conduzem à mesma conclusão que as suas teorias econômicas. Na essência, não visam realizar o socialismo, mas reformar o capitalismo, não procuram abolir o sistema do salariado, mas dosear ou atenuar a exploração, numa palavra: querem suprimir os abusos do capitalismo, mas não o capitalismo".

Em síntese, as teses revisionistas partem do princípio de que o capitalismo é a forma acabada da sociedade humana, bastando apenas que se garanta o seu aperfeiçoamento. Apregoavam, já no início do século XX, o que voltamos a ver contemporaneamente, com as teses do "fim da história". Ao colocar em dúvida a própria existência de classes, afirma-se a impossibilidade não só de uma luta futura do proletariado contra a burguesia, mas ainda a sua luta anterior. O reformismo não vê diferenças entre o burguês e o proletário, homem em geral. É que efetivamente para essa teoria a sociedade humana é idêntica à sociedade burguesa.

As teses reformistas lograram espalhar a confusão no meio do movimento comunista na medida em que, de maneira oportunista, buscavam apoiar-se em "interpretações inovadoras" das teses marxistas. Porém Marx e Engels nunca puseram em dúvida a necessidade da conquista do poder político pelo proletariado. Como sentencia Rosa Luxemburgo, "estava reservado para Bernstein considerar o pântano do parlamentarismo burguês como o instrumento chamado a realizar a transformação social mais formidável da história, quer dizer, a transformação das estruturas capitalistas em estruturas socialistas".

O reformismo é incompatível com a teoria revolucionária e com o movimento comunista. Rosa Luxemburgo ocupou-se desta polêmica por compreender que o que estava em jogo naquele momento não era este ou aquele método de luta, não eram simples questões táticas, mas a própria existência do movimento socialista. Segundo ela, "o objetivo final do socialismo é o único elemento decisivo na distinção entre o movimento socialista e a democracia burguesa e o radicalismo burguês, o único elemento que, mais do que dar ao movimento operário a tarefa inútil de substituir o regime capitalista para salvá-lo, trava uma luta de classe contra esse regime, para destruí-lo; isto posto, a alternativa formulada por Bernstein - reforma social ou revolução - corresponde para a socialdemocracia à questão: ser ou não ser (...). A corrente oportunista no interior do partido encontrou, graças a Bernstein, a sua formulação teórica, que é unicamente uma tentativa inconsciente de assegurar a predominância dos elementos pequeno-burgueses, aderentes ao partido, e inverter a prática transformando, no seu espírito, os objetivos do partido. A alternativa: reforma social ou revolução, objetivo final ou movimento é, sob outra capa, a alternativa entre o caráter pequeno-burguês ou proletário do movimento operário".

A questão da necessária revolução socialista ou da possibilidade das teses do reformismo, não fui sepultada naquele momento histórico, como pretendia Rosa Luxemburgo. Embora essas teses tenham sido derrotadas pontualmente naquele momento, principalmente depois que seus principais teóricos revelaram-se verdadeiros defensores da ordem burguesa, chegando a apoiar a política belicista do estado alemão - em nome de um pretenso nacionalismo - ressurgem com novos contornos a cada década e permeiam até hoje os debates no interior dos partidos comunistas e socialistas, ameaçando permanente a existência e o avanço do movimento revolucionário. 

"Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa"2. Resta saber quando e se, de fato, o reformismo será encenado como paródia, imitação burlesca do que já revelou ser no passado. Se, do contrário, vencer as batalhas da atualidade, momento em que o capitalismo afunda-se em uma crise de largas proporções, estrutural e insolúvel, perderemos talvez a chance de superar historicamente esse modo de produção que nos conduzirá, inevitavelmente, à barbárie.

Notas:

1 - Todas as citações, salvo as que contenham outra indicação, são traduções livres do texto em inglês presente na seguinte edição para e-book: LUXEMBURG, Rosa. Reform or Revolution and Other Writings. New York: Dover Publications, 2006. O texto em português, embora com alguns problemas de tradução, pode ser encontrado em:
http://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/1900/ref_rev/index.htm

2 - MARX, Karl. O 18 Brumário de Luis Bonaparte. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

*Rita Matos Coitinho é mestra em sociologia, cientista social e militante do PCdoB em Santa Catarina

Fonte: Vermelho

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